21 setembro 2005

Ecos do passado

Era noite e chovia.
Os três estalidos, secos como tiros, ecoaram pela casa e me acordaram. Tive certeza que vieram do andar de baixo. Senti medo e o primeiro pensamento foi para meu foi meu pai, vou chamar meu pai, e tateando no escuro alcancei a porta. Assim que pisei no corredor, novos estalidos, dessa vez quatro. Fiquei imóvel. Quando a respiração se acalmou, deslizei rente à parede, por toda a distância que me separava do outro aposento. Esses velhos casarões foram construídos para gente valente, foi o que pensei envergonhado, e como numa confirmação, o primeiro trovão estrugiu , fazendo com que eu disparasse em meio à escuridão, correndo como louco. Precisava chegar ao quarto de meu pai. E a voz da Dinda que repetia sem parar o esse menino não come, é fraquinho, parece uma sombra. E a minha própria voz me recriminava, bem feito, quem mandou não dar ouvidos, enquanto minhas pernas mal me sustentavam.
Finalmente, a porta. Girei a maçaneta. Trancada. Por que será que eles se trancam todas as noites e me deixam só? Quase em pânico, tentei de novo e dessa vez a porta cedeu. Pai, sussurrei, Pai, acorda, tem gente lá em baixo. Pai? Naquele instante, um raio iluminou a cama vazia, nem ele, nem ela, a cama intocada. As lágrimas escorrendo, procurei em volta, penetrei nos cantos de sombra do aposento imenso. Nada. A dor do abandono quase suplantando o terror da noite, decidi voltar para meu quarto, lá estaria mais seguro.
No corredor novamente, ouvi degraus que rangiam. Sim, bem lá embaixo, alguém começava a subir, a madeira cansada da velha escadaria reclamando a cada passo. Nessa hora respondi mentalmente à Dinda que ser mirrado tem lá suas vantagens: pelo menos podia andar nas largas tábuas do chão quase sem barulho. Queria ver se fosse meu primo, corpulento e valentão, estaria em maus lençóis numa hora dessas.. Alcancei o quarto, estranhei a porta estar fechada, vai ver que foi o vento. Juntando coragem, virei a maçaneta devagarinho e a porta se abriu, coincidindo com o rugido zangado de um trovão que acabava de estourar ali por perto. Fechei rápido a porta e corri para a cama. Puxei a coberta por cima da cabeça e fiquei rezando as rezas que a Dinda me ensinou. Ai, por que eu lembrava justo da Dinda que morrera não fazia nem um mês, o caixão lá na sala, os círios ardendo, eu e o primo esticando os olhos, curiosos para ver cara de defunto. Lembrei do toque frio da mão dela sob a minha, quase podia sentir, só toquei para provar ao primo valentão que eu não era nenhum magricela medroso, não. Muda de pensamento, ordenei a mim mesmo, e comecei a contar carneirinhos: um, dois, três. Estalos. Será a Dinda que veio me buscar? Todo mundo dizia que eu era o predileto. Besteira, morto não volta. Quem disse que não, contradisse a Jurema, enquanto batia um bolo para as visitas que vinham para o velório, ainda mais morto que morre em casa. Cala a boca, pensa nos carneirinhos. Cadê o Pai, meu Deus, ele sabe que eu tenho medo, por que saiu e me deixou sozinho? Estalos e rangidos, eu podia distinguir claramente, os rangidos já estavam no alto da escada, cada vez mais perto, chegando à minha porta. Apertei os olhos com força e rezei uma Salve Rainha inteira, sem errar nem esquecer nada.
Acordei ainda de noite, a chuva caindo forte, a mão me sacudindo com urgência e falando baixinho: –Pai, acorda, tem gente lá embaixo.
Jeanete Rozsas