22 julho 2006

Culpa e transgressão

Dia desses, o cliente e amigo Élcio Roefero trouxe à Rato um belíssimo texto elaborado exclusivamente para a apresentação de sua palestra na Universidade Federal de Ouro Preto. Fiquei fascinada com a escritura do moço, então tomei o texto emprestado para postá-lo neste blog. Pra quem gosta de Clarice, é mais que um prato cheio, é um manjar dos deuses.


Culpa e transgressão: o gozo do mal ou uma aprendizagem do amor em “Os desastres de Sofia”, de Clarice Lispector

O conto “Os desastres de Sofia”, de Clarice Lispector (1920-1977), data, inicialmente, de 1964, quando publicado na coletânea A legião estrangeira. Posteriormente, em 1970, o texto foi fragmentado em cinco partes, apresentadas durante cinco semanas no Jornal do Brasil, época em que a autora era cronista daquele veículo. Em 1971, “Os desastres de Sofia” integra, ainda, o volume de contos Felicidade clandestina, que mistura textos inéditos aos textos já publicados em trabalhos anteriores.
Da leitura da obra de Lispector, temos a temática do mal recorrentemente revisitada por suas personagens e narradores. Assim, o sadismo que envolve parte dos seres de Lispector articula-se com a constante subjetividade de seus escritos. Na esteira de importantes estudos que agregam Literatura e Psicanálise, temos como proposta enveredar pela personagem-narradora de “Os desastres de Sofia” e investigar a conturbada e perturbadora relação construída entre ela e seu professor, numa maléfica relação edípica marcada, sobretudo, pelo sentimento de culpa e pelo comportamento transgressor da protagonista.
Num jogo especular, a personagem-narradora procura revelar o professor interiormente, uma vez que também enxerga a si mesma como um invólucro a ser decifrado. Essa identificação entre ambos – ambos desajeitados num mundo feito contra eles – conduz a menina ao incômodo desejo proibitivo de realização amorosa. Sendo assim, busca desesperadamente minimizar quaisquer qualidades do professor, visto que esse amor que sente e repudia – já que a figura do professor evoca a figura paterna – merece, em contrapartida, para a menina, o sadismo da transgressão, configurada como castigo, ao outro e a si mesma, pelo despertar do gozo proibido. Numa frustração de um desejo irrealizável, a protagonista se entrega ao prazer da vingança pela expiação, pelo desejo sádico de maltratar aquele que nela desencadeia “negros sonhos de amor”.
Em síntese, notamos, em “Os desastres de Sofia”, um percurso da construção que cada sujeito faz de si mesmo, numa busca pela satisfação de um desejo instaurado na relação com o Outro. A partir da confluência Literatura/Psicanálise apresentaremos uma leitura do conto de Lispector que, num tom memorialista e confessional, estabelece uma relação privilegiada entre a narradora-personagem e o seu professor. A análise ancora-se nas reflexões teóricas de Sigmund Freud, Jean Bellemin-Noël, Adélia Bezerra de Meneses e Yudith Rosenbaum. Com efeito, vemos em “Os desastres de Sofia” muito mais do que uma narrativa que evidencia um comportamento transgressor: a obra aponta, num lance magistral, para uma aprendizagem do amor, percebida na incompletude e carência da narradora-personagem e seu desejo de ser amada, “suportando o sacrifício de não merecer”.

Élcio é mestrando em Literatura e crítica literária na Puc/SP, bacharel em Letras pela USP, e professor de literatura nas Faculdades Integradas Teresa D’Avila – FATEA.