30 agosto 2006

A ÚLTIMA CASA DA MEMÓRIA

Aberta a caixa de laca, desfeito o embrulho, ali está. Depois de cortado, posto na tira de palha, aquecido sob a lamparina, este pedaço cor de avelã é levado para o orifício do cachimbo, onde borbulha perfumando o ar. Todos estes mínimos gestos cerzidos para a alquimia perfeita, cada um deles ritualisticamente saído das mãos de um cambojano. Um fumador de ópio.



Estamos em uma cabana nas profundezas do Mekong em pleno século 21. Mas o tempo e o lugar são outros para o praticante desta cerimônia hoje em franca extinção. Trata-se do espaço contemplativo que descansa no espaldar da memória - essa remota dimensão aberta por uma passagem rumo a coisas tão sabidas e, no entanto, tão ignoradas.



Temos aqui uma espécie de diário de bordo, escrito por um jornalista norte-americano que se dispõe a partir pelo mundo em busca da última casa de ópio. Mas enganam-se os que pensam que o autor desse relato é um apologista do vício, pura e simplesmente. Na realidade, Nick Tosches pode ser reconhecido como um desses raros amantes do rito que, bombardeado pelo artificialismo e pela cultura do efêmero dos nossos dias, de repente sai à procura de um longínquo artefazer, cujo costume guarda certo parentesco mágico com os cultos da pré-história que serviram para significar o tempo e atribuir à vida motivo de celebração. Falamos, pois, de uma expedição à última casa da memória, aventura a que o autor se entrega do mesmo modo apaixonado e solitário com que o fumante de ópio se rende às jornadas da alma.



Enquanto homens de alta classe, instruídos pela erudição do supérfluo, pagam 35 dólares para saborear meia cebola salpicada com caviar num afamado restaurante de Nova Iorque - não qualquer cebola, vejam bem, mas uma cebola de Walla Walla -, convictos da mais fina apreciação do exótico, no centro do labirinto das ruas de Hong Kong, velhos chineses preparam o verdadeiro repasto: sopa de cobra com pétalas de crisântemo – não qualquer cobra, vejam bem, mas a serpente mais venenosa. Esses dois fatos narrados pelo autor, no percurso de sua viagem de um extremo a outro, em verdade traduzem dois extremos de vivência do que se usa chamar “sabedoria”.



Traçando um breve histórico do ópio, desde suas origens, Tosches ainda se detém no modo surpreendentemente sofisticado de preparo da droga. Ao acompanharmos sua descrição, passo a passo, a impressão que nos fica é de estarmos presenciando a confecção de uma relíquia tão inigualável como pictogramas fenícios inscritos numa pedra ou glifos numa cerâmica maia. Importa aí toda a mestria joalheira, o vagar de cada processo, a preciosa dedicação. Fumar o ópio extraído de tal mineração vem a ser apenas o ato final de consagração do longo ritual anterior a esta nuvem aromática, através da qual a mente divaga por um caminho que, sendo evanescente, é também, em alguma instância além, um caminho duradouro.



Em um dos momentos marcantes do livro, não à toa sob o efeito de um trago e outro, Tosches escreve: "Todos os comprimidos e toda a prostituição da psicoterapia do mundo não são nada comparados com as ancestrais palavras coptas do Evangelho de Tomé: ‘Se trazes à tona o que está dentro de ti, o que trazes à tona te salva. Se não trazes à tona o que está dentro de ti, o que não trazes à tona te destrói’. É simples e indecifrável assim. Esqueça a interação do ópio com a serotonina. O que vale é a interação dele com a sabedoria do Evangelho de Tomé. Seus vapores pertencem ao que você tem dentro". E, afinal, como o próprio autor questiona logo adiante, por que um viciado em ópio seria mais desprezível do que "um dependente da televisão, ou das outras artificialidades rasteiras de um mundo tão vazio a ponto de ter consciência e entendimento da pseudo-ciência da serotonina, mas não da sabedoria de Tomé?".



Chegamos então ao cerne da busca trilhada ao longo do livro: a busca de um “paraíso quase perdido”, no qual uns vêem somente um bocado de tóxico produzido a partir da seiva da papoula, e outros, o rastro da memória e do ofício da vida, sementes uma vez já plantadas no campo dos séculos por grandes rapsodos.




MARIANA IANELLI
Autora dos livros Passagens (ed. Iluminuras) e Fazer silêncio (finalista do Prêmio Jabuti 2006 – ed. Iluminuras), entre outros.



Sobre o livro:



A última casa de ópio
Nick Tosches

Conrad Editora

93 páginas

R$ 25,00