14 agosto 2006

Tradução ou falsificação ?

É impressionante a má qualidade da tradução de obras científicas e literárias publicadas e vendidas em nosso país por editoras inescrupulosas, que encaram o seu nobre ofício sem nenhuma vocação ou profissionalismo, mas apenas como um negócio cujo único objetivo é lucrar de maneira rápida e segura. Na minha experiência de professor universitário e leitor contumaz, tenho deparado com inúmeras traduções absurdas, que não hesitaria em classificar de criminosas, pois não passam de contrafações que desfiguram e falsificam as obras originais. Pior do que a chamada pirataria de CDs e DVDs (que reproduz e comercializa obras sem pagar impostos ou direitos de propriedade intelectual, mas não as falsifica), esse tipo de desonestidade parece desenvolver-se sem qualquer controle entre nós, prejudicando o conhecimento e a formação de estudantes e leitores. Bastam poucos exemplos recentes para demonstrar que há editoras vendendo gato por lebre, desrespeitando não apenas nosso bolso e inteligência, como também os autores e editoras das obras originais.
No ano passado, uma grande editora do Rio de Janeiro publicou a tradução de um livro crucial para o debate sobre as perspectivas de agravamento da crise mundial do abastecimento de água, escrito por uma comissão de especialistas franceses de alto nível. Lançado em 2004, na França, o livro discute caminhos alternativos para assegurar o financiamento da infra-estrutura necessária para garantir acesso universal à água potável e ao esgotamento sanitário até 2025, conforme os Objetivos do Milênio firmados na ONU em 2000. Infelizmente, o que poderia ser uma excelente contribuição da editora para o debate sobre este tema em nosso país revelou-se uma catástrofe em termos de tradução. Na apresentação de um dos autores, engenheiro sanitarista, sua atuação no continente africano em um programa de “poços e perfurações” (puits et forages, em francês) foi simplesmente traduzida como “campanha de potes e forragens profundas” (sic). Noutra passagem, “puxar a descarga” do vaso sanitário (tirer la chasse) foi traduzida como “atirar na caça”! Desnecessário dizer que as frases decorrentes deste tipo de tradução mecânica, que parece obra de algum programa de computador, resultaram em um livro cujo texto é quase sempre incompreensível. No mínimo, o volume teria de ser retirado do mercado e os compradores ressarcidos do prejuízo de terem aquirido um produto falsificado.
E não é apenas a ciência que sofre com práticas inescrupulosas de “tradução”, mas também a literatura. Um triste exemplo mostra como as crianças também estão sendo enganadas. Há alguns anos, lendo uma versão do Peter Pan para meu filho, deparei com uma frase na qual o narrador dizia que, na Terra do Nunca, a ilha onde vive o personagem, “nada cresce”. Ora, um simples descuido, ao traduzir o texto de uma versão espanhola, havia transformado a terra maravilhosa da infância eterna, onde ninguém (nadie) crescia, em um deserto amaldiçoado, matando a poesia do original.
Os exemplos mostram que a falta de escrúpulos neste campo envolve também algumas empresas de renome e expressão nacional neste ramo. Obviamente, ainda existem editores comprometidos com a qualidade e relevância de suas publicações, à frente de pequenas, médias e grandes editoras, que contratam tradutores competentes e submetem suas versões à revisão de especialistas. Mas é preciso reconhecer que mesmo estes têm sido pressionados pela feroz concorrência em larga escala que tem prevalecido em todos os campos da mídia e da indústria cultural na era da informação globalizada em que vivemos. São compelidos a publicar certos títulos, sob um formato específico, em determinado momento, para aproveitar nichos e oportunidades de mercado cada vez mais fugazes, o que gera descuidos pontuais mais ou menos graves mesmo nas editoras mais profissionais. Mas a concorrência, a pressa e o lucro não podem ser usados como justificativa para a desonestidade intelectual e a contrafação do saber. Cabe aos escritores, professores, editores, tradutores, revisores, leitores e organizações de classe do setor zelar pela qualidade dos livros traduzidos que se publicam em nosso país, com o mesmo carinho e seriedade com que as editoras estrangeiras de maior prestígio tratam as obras científicas e literárias de nossos melhores autores nos países avançados.

Por Marcelo Coutinho Vargas - sociólogo e urbanista, professor da Universidade Federal de São Carlos, poeta e autor do livro O negócio da Água (Annablume, 2005), entre outros.