20 setembro 2006

Menção Honrosa Prosa - "Sem volta"

A janela estava apenas encostada, foi fácil entrar. Entrou silenciosamente no quarto e sentiu a temperatura mais quente, diferente do ar frio da manhã do lado de fora. Sentia-se um pouco cansado e com uma leve tensão, ofegando silenciosamente.
O marido dela já havia saído com o filho, sabia disso, e ela estava sozinha em casa agora. E dormia profundamente. Ele aproximou-se da cama e começou a observá-la de perto, cuidadosamente. Ainda ontem ele estava descansando um pouco, na varanda da casa de uma conhecida, no primeiro andar de uma rua comercial muito movimentada, quando a viu passar, vestindo uma camiseta azul celeste, cor que ele gostava. Usava um bracelete de cobre. Chamou sua atenção o cabelo preto bem liso, cortado na altura dos ombros, pele clara, nariz de desenho reto. Os olhos castanhos claros, quase cor de mel foi o que mais o agradou. Imediatamente, e pouco racional, ele concordaria, desceu até a calçada para vê-la mais de perto. Não foi difícil, ela parecia passear fazendo hora, vendo as vitrines das lojas próximas. Seguiu-a a uma distância segura, para que ela não sentisse sua presença. O mais perto que chegou foi quando ela encontrou uma amiga e distraiu-se o suficiente para que ele se aproximasse a ponto de sentir seu perfume, levemente adocicado. Logo ela olhou o relógio, despediu-se e correu para uma escola próxima, onde pegou uma criança na porta, seria seu filho. Era um menino miúdo, de aparência frágil, que ela abraçou com a ternura e atenção das mães jovens. Pegou-o pela mão e, carregando seus pertences, saíram juntos pela calçada, perdendo o ar sensual que ela exalava até então. Não foi difícil descobrir onde ela morava.

O quarto tinha a luz clara da manhã batendo na parede cor de creme, silencioso e confortável. Aproximou-se da cama e começou a observá-la nos detalhes. Ela se enrolava parcialmente num lençol branco de algodão puro, abraçando um travesseiro. Um edredon também branco fazia parte da confusão da cama. Vestia camiseta e calcinha, e tinha um ar quase infantil. Observou sua respiração serena e aproximou seu rosto do dela, para tentar adivinhar o que sonhava. Não conseguiu, claro, pensou com bom humor. Suas mãos, diferentemente da jovialidade do corpo, se mostravam fortes e maduras, com unhas curtas. Olhou para suas pernas e no tornozelo direito notou uma cicatriz clara, pequena, e ficou imaginado como ela havia ganho aquilo. Vendo-a ali, pensou, gostaria de fazer amor com ela, mas tirou isso da cabeça imediatamente. Preferia não pensar nisso. Mas não resistiu a tocar de leve em seu pé, e nesse momento, ela teve um pequeno sobressalto que o fez parar imediatamente. Ela começava a despertar. Ele afastou-se rapidamente, saindo para o hall dos quartos, um ambiente ainda escuro, encostando-se bem junto da parede. Uma música vinda do rádio-relógio começou a tocar naquele momento e, sem vê-la, pode imaginá-la abrindo os olhos para ver as horas. Deviam ser oito. Ela apenas reduziu um pouco o volume do rádio. A música que tocava era dos Paralamas, que dizia “ eu hoje joguei tanta coisa fora, eu vi o meu passado passar por mim...” . Ele gostava daquela musica, especialmente da parte que dizia “o céu de Ícaro tem mais poesia que o de Galileu...” apesar de ele não concordar muito com isso. Ele continuou ali parado no hall, pensando no que fazer quando a ouviu bocejar, espreguiçar-se e levantar, indo em direção ao banheiro, fechando a porta. Aproveitou para sair dali. Foi em direção à sala silenciosa, e decidiu passar direto para a área de serviço, contígua à cozinha, onde ele poderia observá-la preparando o café. Olhou as roupas no varal, uma confusão de roupas de criança coloridas, com toalhas e calcinhas pequeninas e também coloridas, que despertavam outros pensamentos. Uma certa bagunça naquela parte da casa transmitia a rotina de uma família, com baldes misturando-se a brinquedos e panos de chão, como toda área de serviço que ele conhecia. Nisso ele a ouviu chegando à cozinha e escondeu-se o melhor que pôde, com medo que ela pudesse vir para onde estava. Daí, seria obrigado a entrar num quartinho ou, finalmente, no banheiro ao lado, e seria vexamoso para ele ter de ficar ali misturando-se às vassouras e esfregões. Ela parou na cozinha mesmo, e começou a fazer um café. Vestia agora um roupão atoalhado e, apesar de descalça, parecia sentir frio. As mulheres sempre sentem frio. Estava com os cabelos amarrotados e com os olhos ainda sonolentos, com uma beleza diferente daquela que ele havia visto ontem na rua. O cheiro do café espalhava-se pela casa agora, e ele o aspirava com prazer. Ela tomou-o puro, apenas com um pouco de leite sem açúcar, e comeu a metade de um pão francês aquecido num forninho elétrico, com manteiga Aviação. Parecia ter pressa. Olhou para o relógio do microondas e voltou para o banheiro levando a xícara com um pouco mais de café. Ao ouvir a porta do banheiro batendo, ele pôde sair de seu esconderijo e conhecer um pouco o resto da casa. Viu uma sala ampla, com uma claridade suave e gostosa. Passeou os olhos pelos CD’s, reconhecendo muitos deles. Alguns ele também gostava bastante. Viu algumas fotos dela sozinha, muitas do filho, outras de pessoas que ele não podia imaginar quem fossem. As fotos são cuidadosas seleções de alguns momentos, que usamos para nos lembrar que é possível sermos felizes. Foi olhar a estante de livros. Esses falam mais sobre seus donos do que as fotografias. Viu bons autores, romances e policiais. Sempre valorizou o ecletismo literário. Boa literatura existe em vários gêneros. Não entendia por que haviam pessoas que passavam a vida toda lendo só mistério ou biografias. Bom, pensou, deixa pra lá, o importante é que leiam. Viu também alguns títulos sobre viagens e lugares exóticos, estilo próprio dos espíritos inquietos. Alguns souvenirs falavam dos lugares onde haviam ido, e ficou em dúvida se aquela coleção kitsch era a sério ou de gozação. Talvez as duas coisas ao mesmo tempo. Naquele momento, ouviu o barulho de portas novamente, e sentiu que ela vinha para a sala com pressa. Correu de volta para a área e conseguiu vê-la pronta para sair. Usava uma saia preta mais justa que a de ontem e calçava uma bota de couro marrom bem discreta. Vestia uma blusa branca e uma pashmina em tons ocres, estava mais frio hoje. Passou rapidamente as coisas que estavam na bolsa de ontem para uma bolsa maior, e abriu a porta com pressa. Voltou para procurar o celular que havia esquecido em algum lugar, talvez na cozinha, perto de onde ele estava. Quando já estava voltando para a porta ele não resistiu e sussurrou:
- Bom dia.
Ela voltou assustada, em dúvida se tinha ouvido algo ou não. Lógico que não, estava sozinha. Dirigiu-se à porta e saiu. O barulho da chave virando na fechadura o deixava totalmente sozinho na casa e mais uma vez sozinho consigo mesmo, com um sentimento estranho. O que adiantava aquilo tudo, vê-la de tão perto, conhecer detalhes de sua vida, saber os livros que lê e as músicas que ouve e não conseguir passar disso? Sentiu-se abandonado, ele e sua estúpida sombra, impotente como um gato que fica em casa quando os donos saem para trabalhar. Sentiu pena de si mesmo mas não havia o que fazer. Apenas resignar-se com o estado das coisas. E calar.
Não havia muito mais o que ver. Voltou aborrecido ao quarto com a cama desarrumada, deu uma olhada no banheiro ainda úmido de vapor do banho recém tomado, viu jogado sobre a pia o bracelete que ela usava ontem, sentiu o mesmo cheiro de perfume que havia sentido perto dela e, repentinamente, viu-se no espelho. Era uma figura triste, com o rosto magro, a cabeça coberta por um cabelo escuro comprido, sem corte algum. Tinha o corpo franzino, não era alto, não se achava bonito. Preferiu sair dali. Abriu de vez a janela e viu a vida do lado de fora, com seus barulhos, fumaças e gente, muita gente. Felizes os que sofrem só com isso, pensou. Subiu ao parapeito e olhou para baixo – 15 andares. Sentiu um frio na espinha, mas pulou assim mesmo. Caiu alguns metros até que suas asas tivessem força para erguê-lo no ar e alçar vôo naquela manhã fresca de outono. Decidiu que não voltaria a vê-la.

Por Mario Fioretti