20 setembro 2006

Vencedor Prosa - O OLHO ESQUERDO

Um lagarto estava no canto da sala. Os olhos atentos no movimento dos meus passos. Se pudesse haver comunicação entre nós certamente eu pediria a ele que se retirasse, em paz. No entanto, mal consigo me comunicar com os meus pares. Como seria a voz de um lagarto se ele falasse? Quando criança eu me lembro que os animais tinham vozes e comunicar-me com eles não era algo tão difícil assim, podia até saber o que pensavam.
Eu não poderia mantê-lo em minha casa. Na casa do meu pai. Meu pai que odiava os animais. Meu pai que havia matado três gatos e uma andorinha. Há três meses que o velho havia falecido. O que é que um lagarto come? Poderia domesticá-lo. Quem sabe ele me seria útil contra os possíveis invasores. Quem sabe se tornasse um companheiro e me salvasse da solidão. Nunca acreditei mesmo nessa besteira de que os cães é que são os melhores amigos dos homens. Meu pai também detestava os cães, “só sabem babar, latir, comer e cagar”, era o que ele dizia.
O lagarto mantinha a mesma posição e mirava os olhos no retrato do meu velho pai, pendurado recentemente na parede. Com agilidade rastejou até a pequena moldura e fixou-se ali, em cima da fotografia.
Os olhos inchados do bicho lembravam os olhos inchados do meu pai. O corpo enrugado do bicho lembrava as rugas do meu pai. Como é que surgira em minha casa aquele lagarto? De onde viera rastejando? O rabo balançava espalhando o pó acumulado de três meses sem faxina. No canto da sala, uma velha espingarda pareceu-me uma solução rápida para, se não matar, pelo menos espantar a criatura.
Meu pai limpava aquela arma toda semana e fazia questão de deixá-la carregada. “Para qualquer necessidade”, ele justificava. Talvez tivesse chegado o momento da tal “necessidade” de que falava o velho, pois nunca ouvi o som do disparo daquela espingarda, que para mim não passava de um objeto de decoração.
O lagarto permanecia imóvel sobre o retrato, de modo a deixar visíveis apenas os olhos e a testa do meu pai. Mirava-me. Seguia-me. Investigava-me. Peguei a arma, apontei para o corpo do animal. Tinha os dedos tremendo no gatilho. Não conseguiria matá-lo; ele poderia ser um bicho de estimação. Os olhos inchados do meu pai no retrato me encheram de coragem e cólera. Disparei. Caí no chão com o tranco do disparo. A bala quebrou o vidro do pequeno quadro e atingiu o olho esquerdo da imagem. O lagarto, assustado, rastejou para a rua, ileso.
Não fosse pelo caminhão a surpreendê-lo no asfalto ele ainda estaria vivo, dividindo comigo o espaço da casa do meu pai.



Por Marcelo Maluf